terça-feira, 21 de maio de 2019

Feira de livros

Muito antes do crepúsculo, o feirante gritava a plenos pulmões:

- Olha a melancia! Moça bonita não paga, mas também não leva!

A garota perfeita passa apressada.

- Quem era? - pergunta Iracema.

- A menina que roubava livros. - responde Ulisses.

- Pelo jeito continua roubando. - diz o homem que calculava o valor das suas compras.

- Fala sério, irmão! Até que se prove o contrário, somos todos inocentes. - intervém o feirante.

- O corpo fala. - responde o homem. - Viu como ela corria?

- Vai dar a volta ao mundo em 80 dias - debocha Iracema.

- Pelo menos mantém o físico. – brinca Ulisses e todos riem.

Pouco adiante, o grande Gatbsy paquera uma ninfeta de nome Lolita, enquanto aguarda um artista de rua terminar o retrato de Dorian Gray. 

O caçador de pipas passa distraído e tromba com os miseráveis que pedem esmolas.

Sentado numa cruz de madeira, o pagador de promessas come um pastel e toma caldo de cana pensando: “Essa feira é a divina comédia!”

- Quem mexeu no meu queijo? – pergunta O Mercador de Veneza.

- Homens e ratos tentaram - responde O estrangeiro. – Mas só os ratos conseguiram.

- É a revolução dos bichos.

Carrie, a estranha, chega gritando:

- Onde está Teresa?

Está à espera de um milagre. A cabana onde ela mora está pegando fogo.

- Obrigado, Dom Quixote! Alguém pode ajudar?

Teresa, cansada de cometer crime e castigo receber, agora estava em busca do  tempo perdido, agindo como uma garota exemplar.

E o vento levou todos para ajudá-la.

A cabana ficava depois das cidades de papel e apesar do perigo iminente, as pessoas tiveram a sutil arte de ligar o foda-se. 

O grupo seguiu o som e a fúria do fogo quente como o Inferno, e quase acabou desaparecido para sempre, o que deixaria a história sem fim.

Mas, um dia, depois de quase cem anos de solidão, Teresa finalmente foi encontrada.  E o grupo todo pode retornar.

No caminho de volta, cruzaram com o apanhador no campo de centeio que mesmo velho e magro feito um saco de ossos continuava trabalhando.

Já a feira, bem como os antigos lares e famílias, não existia mais. Havia ficado em algum lugar do passado.

Naquele grupo de solitários centenários se abateu a angústia. Como teriam forças para recomeçar?

De repente, o céu escureceu passando por cinquenta tons de cinza, mas em vez de uma tempestade, surgiu das nuvens o mágico de Oz que num estalar de dedos transformou todos em jovens novamente.

O grupo se dividiu entre a cidade e as serras. 

Teresa foi morar com Alice no país das maravilhas.

E todos viveram felizes para sempre.


Fim

Obs: Dizem que essa história é verídica e que são memórias póstumas de Brás Cubas.


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quinta-feira, 16 de maio de 2019

O homem do futuro

Naquela tarde, sozinho na biblioteca, lia um livro quando "ele" chegou:

- Boa tarde!

- Boa...

Não consegui completar a frase. O homem do outro lado do balcão era, e ao mesmo tempo não era, eu!

- Tudo bem, Paulo?

Ri de nervoso. 

- Como isso tá acontecendo?

Ele sorriu. E pude notar seus dentes mais brancos e alinhados que os meus.

- Calma, Paulo... Você é muito ansioso.

- Como posso ficar calmo? Eu tô de frente comigo mesmo. Só que numa versão melhorada. Como isso é possível?

- Olha isso.

Ele baixou a cabeça mostrando seu couro cabeludo. Estava cabeludo mesmo! 

Cocei minha cabeça e senti onde meu cabelo já começa a falhar...

- Implante? - perguntei.

- Não. Tratamento.

Sua pele, diferente da minha, estava sem manchas ou oleosidade. 

Vestia roupas limpas como as minhas, mas, muito mais novas.

Mas era a sua postura, confiança e energia positiva que mais me chamavam a atenção.

- Por que você veio? 

- Por que você continua aí?   

Recuei. Aquela pergunta bateu forte no peito.

- Eu tô trabalhando aqui. 

- E você se sente útil aqui?    

Engoli seco.

- Sim. Eu... Eu ajudo os leitores a escolherem livros e...

- E...?

Fiquei irritado.

- Aonde você quer chegar com isso, cara?

- Você é feliz com seu trabalho? Com sua vida?

Fiquei olhando para ele. Ele sereno, aguardando a resposta.

- Quem você pensa que é pra me interrogar assim?

Ele sorriu.

- Eu poderia responder: "eu sou você amanhã", mas... Não tenho certeza disso...

Sentei um instante. Estava zonzo. Incrédulo com aquilo tudo. Tomei fôlego e encarei a situação:

- Olha... Não sei se tô ficando louco. O que sei é que você é uma versão melhorada de mim mesmo. E isso me leva a pensar que voltei do futuro pra me dizer alguma coisa...

O "outro eu" inclinou a cabeça como quem diz "pode ser". Continuei:

- Mas, agora você disse que não tem certeza de que sou eu amanhã... Tô confuso!

Tranquilo, o "outro eu" pediu que eu me levantasse e ficasse frente a frente com ele. Tocando meu ombro:

- Paulo, o que define uma mudança na vida?

- Várias coisas. - respondi. - Muitas delas nem dependem da gente. Uma surpresa, um acidente, por exemplo.

Ele assentiu com a cabeça.

- Além dessas coisas das quais não temos controle, existe algo mais que nos permita mudar de caminho?

Pensei um instante.

- Sim. Uma escolha.

- Exatamente! E feita a escolha, qual o passo seguinte?

- Ação? 

- Ação! 

Olhei para baixo. Depois ao meu redor. Lembrei de quando era criança e sonhava trabalhar na biblioteca. Já adulto, prestei concurso, passei em terceiro lugar. Depois de quatro anos fui contratado. E já havia passado seis anos desde então.

- O que você faz da sua vida? - perguntei.

Seus olhos brilharam.

- Eu vivo! Uni tudo o que eu gostava e fazia bem: teatro, leitura e escrita. 

- Como foi possível?

- Escolha, Paulo.

Quantas escolhas eu já tive que fazer na vida... Nem sempre acertei. Mas, todas elas mudaram muito o rumo das coisas.

- O que você escolheu? 

- O que você quer escolher nesse momento? Responde a primeira coisa que aparecer na sua cabeça.

- Estudar!

Meu outro eu sorriu.

- Estou fazendo Mestrado em Artes Cênicas em outra cidade. Nessa cidade que você está pensando.

- Por isso tanta leitura, tanta escrita e teatro. 

- Sim. Vou transformar minha dissertação de Mestrado em livro. 

Fiquei tão feliz pelo meu "outro eu" que o abracei.

Quando abri os olhos, estava sentado sozinho com um livro nas mãos.

Foi então que eu entendi. A felicidade que senti pelo outro, na verdade era por mim mesmo. Porque ele era eu a partir da minha escolha. E eu havia acabado de escolher. E comecei a agir naquela mesma tarde...




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quarta-feira, 15 de maio de 2019

Leitura da mão

Shirlei havia acabado de se cadastrar na biblioteca e quando lhe entreguei o regulamento ela soltou essa:

- Reparei rapidamente em sua mão e achei bastante interessante...

Percebendo que fiquei meio sem jeito, ela explicou:

- Não estou te assediando... Eu trabalho com as mãos.

- Ah! A senhora é manicure?

- Não.

- Massagista?

Ela sorriu.

- Eu sou quiromante.

- Que legal! Quanto a senhora cobra para ler a mão?

- Nada. Faço porque é meu dom.

Como não havia mais ninguém além de nós, tratei logo de mostrar as duas mãos e ela imediatamente começou a analisar:

- Vejo que antes de trabalhar aqui, houve um período de muita luz na tua vida.

"É porque trabalhei 10 anos na Companhia de Energia Elétrica" – respondi mentalmente.

Ela prosseguiu:

- Há pouco tempo, você descobriu que uma presença feminina na sua vida não era o que você esperava.

"Bom... Ganhei uma gata e chamei de Lurdes. Depois, descobri que não era gata e sim um gato macho. Faz sentido."

- De um ano para cá, vejo que algumas peças não estão se encaixando na sua vida.

"Acertou na mosca! As última 3 peças de teatro que tentei fazer não vingaram. Essa mulher acerta todas!" - continuei deboxando em pensamento. Então, peguntei:

- E o meu futuro?

Ela espremeu os olhos como se estivesse com dificuldades para enxergar.

- Desculpe-me... Vejo o seu rosto, mas... Está tudo esbranquiçado.

"De fato, minha barba e meus cabelos estão precisando de um tonalizante para disfarçar os fios brancos."

Recolhi minhas mãos e agradeci por educação.

Sempre acreditei em videntes, mas, aquela mulher não era quiromante nem aqui nem na China.

Antes de ir embora, porém, ela me surpreendeu:

- Tchau, Paulo Sergio, e obrigado!

Como ela sabia meu nome se eu não havia falado?

Corri até a rua e chamei:

- Shirlei!   
   
Ela se virou.

- Como você sabe o meu nome?

- Eu li no teu crachá.

A honestidade da sua resposta me fez voltar ao trabalho pensando:

"Não se fazem mais charlatões como antigamente..."




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terça-feira, 14 de maio de 2019

Onde está Teresa?

Um homem careca e carrancudo, muito parecido com o vilão dos Vingadores, encostou no balcão da biblioteca e questionou minha colega:

- A Teresa tá aí?

- Mas, quem é Teresa?

- Teresa é minha filha.

- Desculpe, não conheço.

O homem agitado andava de um lado para o outro bufando feito um touro. 

- O senhor pode entrar nas salas de leitura e ver se ela está lá.

O homem foi, voltou e novamente perguntou:

- Mas, a Teresa veio aqui hoje?

- Dá uma olhada no livro de presença. Vê se ela assinou.

Mas, em vez de conferir o livro, o homem sacou o celular do bolso e ligou, provavelmente, para a mãe da menina:

- A moça da biblioteca disse que a Teresa não veio aqui hoje.

Minha colega olhou para mim "p... da vida". Fiz sinal para se acalmasse, deixando o vilão comigo. O homem desligou o celular e novamente se dirigiu a ela:

- Já que eu tô aqui, vou pegar um livro. A senhora tem alguma sugestão?

- Tenho! - eu disse tomando a frente.

Peguei um livro que havia acabado de ser devolvido e mostrei para o carrancudo.

- Leva este aqui.

O "Thanos cover" fechou ainda mais a cara, mas, graças a Deus, não estalou os dedos. 

Não sei porque ele foi embora chateado. 

Segue abaixo o livro que indiquei:




Irônico? Eu? 

Não! 

Eu só quis ajudar...

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